sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

pelo menos o inferno é quente.

"Não vem me cobrar respostas uma vez que não responde minhas perguntas"


Esbravejou cuspindo e saiu pisando duro, abaixou o porta-retrato com a nossa foto
e bateu a porta atrás de si.

"Eu não te aguento mais".
Era o que eu queria responder. Seco assim, como tem que ser.

Eu não te aguento mais e não aguento mais esse inferno mútuo que criamos pra viver.
Eu não aguento mais essa relação de bosta que a gente se meteu por medo de ficarmos sozinhos.
Eu não aguento mais você olhar no fundo dos meus olhos e mentir que tudo vai melhorar, quando sabemos que não vai.


Nossa história de merda já deu.


Eu não te escolhi, tampouco você me escolheu.
E se a gente continua se afundando nessa lama é porque se acostumou com a inércia de ser infeliz.
Nascidos pra se conformar e se adequar.
Se a gente fosse prum chiqueiro reclamava nos dois primeiros dias, no terceiro já tava vivendo feito porco.

Eu me acostumei com essa vida tempestuosa, de copos atirados e corpos entrelaçados logo depois.
Mentiras juradas e juras mentidas.
A infelicidade nos abraça tão calorosamente que a gente é quase feliz.
E é por isso que cada vez que minha cabeça reverbera "eu não aguento" eu sei que é só outra desculpa pra continuar nessa cama esperando você abrir a porta, levantar o porta retrato e vir se amar comigo.


É por isso, meu bem, que não respondo suas perguntas e não me interessam suas respostas.
Nosso equilíbrio tá nesse desespero silencioso das meias verdades por noites inteiras.
Infelizes para sempre. Pelo menos o inferno é quente.

segunda-feira, 10 de março de 2014

O jornal explodiu. Os pássaros voaram para longe de toda a confusão. Só restaram dois ou três irmãos, que não se soltavam nem corriam para lugar algum. Eu tava de longe, mas reparei no olho de vidro de um dos três camaradas. Nem se moviam, não se assustavam. Publicidade e propaganda não faz arrepio em gente malandra. Da janela do meu quarto dá pra ver a praça e um pedaço da avenida, dá pra ver os tios fumando maconha e os primos chutando bola. Todo mundo fingindo ser alguém melhor na vida. Eu não. Eu tô puto tentando entender por que aqueles caras não correram ainda. Vou descer essas escadas e vou bater naqueles moleques até causar algum impacto, até explodir dentro deles, que nem explodiu no jornal.

"Olha pra mim, irmão, olha pra mim que pelo teu olho consigo enxergar toda a tua essência. Me conta como você guarda seus desaforos. Me conta a mágica que cê tá fazendo. Não olha pro chão não, por dentro do teu olho eu vejo o mundo. E é tudo falso. Tua calma é falsa e teu olho também."

O neguinho não faz nada. Fica olhando pros camaradas sem entender porra nenhuma. Começo a ficar mais calmo, procuro o maço de cigarros dentro dos bolsos do casaco. Aí percebo que deixei o casaco em casa e fico puto de novo. Subo as escadas de emergência, pego o cigarro e fico olhando os irmãos de lá de cima. Quando a fumaça aumenta, o de olho de vidro se levanta e vai embora. É bem na hora que a polícia chega. Os outros dois vão atrás. Nenhum deles tem expressão. Nenhum deles tem balanço quando anda. Bem na esquina, o mais ofendido olha pra mim e acena, dá um tchau, levanta a mão e grita.

"Por que cê não correu da explosão?"

Alguma coisa me prendia aqui, nem preciso dar explicação. Se era minha própria raiva me prendendo, se eu não conseguia acreditar no que tava vendo. Se eu não consigo mais acreditar no mundo e tenho que ficar para apreciar a destruição. Queria descer e ir embora com o cara do olho de vidro. Queria descobrir qual é o lugar do mundo que permite nascer gente assim. Gente surda, que não escuta as provocações da vida. Gente limpa, que não esbarra em sujeira de gente fina. Gente que não cresceu no meio de grana e cocaína. Eu com a minha camisa amarrotada, que nunca me encaixei em lugar nenhum, cheio de falhas na barba e muitas contas para pagar. Dou uns tapas no ouvido que ficou meio surdo com a explosão.

Acho que estou ficando louco. Ou melhor, ou sou eu, ou são eles. Senti uma puta inveja daquele olho de vidro, todo na dele, meio azul, sei lá, cor de alma. Chegava a dar paz, mas eu nunca acreditei muito nessas coisas. Não me lembro da última vez que fumei um cigarro, apesar de só terem se passado alguns minutos. Não me lembro da última vez que o mundo acabou, talvez semana passada ou há dois anos, seja o que for. Minha mente está confusa. Estou admirando aquele olho de vidro, estático, meio psicótico, com o rosto amarelado, doente, algum mendigo com hepatite, um homem de muletas, todos eles se parecem comigo. Estou amargo. O olho de vidro do irmão rouba minha calma.




quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Poliana

Poliana não bebia. Não usava drogas, não fodia. Poliana morava com os pais, às vezes com uma prima. Poliana não gostava de gente, espumantes, taxistas, feira aos domingos, motociclistas. Eu não a conhecia, mas sentia um gigante desprezo por Poliana. Ela cheirava a todas as coisas que eu odeio. Ela representava todos os meus medos mais controversos, cirrose, abortos, overdose. Sociopatas, vômitos, taxas, almoços, retrovisores. Poliana me infestava de desconfortos, aumentava minha desconfiança, me colocava ameaçado. Eu já não era ninguém quando Poliana existia ao meu lado.

Eu não gostava de Poliana e Poliana não me amava. Frequentava a Igreja aos domingos e orava toda Ação de Graças. Eu cuspia o chiclete na rua e deixava as meias sujas para fora do cesto de lixo. Poliana me encaminhava aos melhores centros de reabilitação, mas eu nunca estive sóbrio perto de Poliana. Ela me sugava toda a seriedade, roubava de mim toda a castidade. Eu nunca reclamava. Poliana me acha insensato, porco, consumista, estabanado. Eu queria matar Poliana da mesma forma que ela me matava todos os dias. Poliana me impedia de toda minha pureza, toda a minha coesão. Poliana fez de mim um corrupto, encheu meus olhos de sujeira e podridão.

Acabei me casando com Poliana. Nos reencontramos cinco anos depois de toda aquela confusão. Poliana agora dá uns tapas em um baseado e fode como ninguém. Poliana se mudou para minha casa, apesar de ainda não termos um quarto só para mim. Poliana adora charutos, cervejas, camas, apostas, dinheiro. Poliana sou eu, mas eu também já não sei quem sou. Ela cheira por todos os cômodos. Ela é o meu maior medo mais controverso. Poliana me infesta de baixarias, apreende meu estrago, ameaça minha calma. Eu já não sei quem é Poliana quando eu existo ao seu lado.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Anna

Eu conheci Anna em 1997 e ainda não sei por que tive que deixá-la. Naquele ano meu irmão mais novo acabara de completar oito anos e eu terminava de assistir ao documentário "A Invenção da Psicanálise" e me apaixonava por Pink Floyd. Anna era dois anos mais velha do que eu e usava moletons listrados, muitas vezes coloridos, dispersos entre verdes e pretos, amarelos e laranjas. O cabelo desgrenhado, muito mal escondido atrás de um chapéu preto, marcado pela poeira de seu quarto bagunçado, infestado de mesquinharias, vídeo cassetes, óculos escuros, pornografias. Eu gostava de Anna pela sua boca perfeita, os olhos muito bem posicionados, secretos, decorados pelo seu nariz alinhado, arrebitado, concreto. Anna não era muito bem vestida, digo, arrumada, padronizada, mas chamava atenção pela tinta de baixo das unhas, as calças rasgadas, seus sapatos manchados. Quando se sentia chique, usava um blazer por cima de uma camiseta dos Doors. Eu a chamava de Mia Wallace e ela me perguntava se eu estava carregando alguma droga ilícita dentro do meu paletó. Ela me chamava de Marlon Brando e eu ficava puto de nunca poder ser o personagem. Ela me incentivava a escrever, minhas obras escassas, meus pensamentos fúnebres, toda aquela porcaria sobre sindicatos, papéis amassados, jornalistas, revolução. Anna adorava. Eu não. 

Eu conheci Anna em um baile de formandos, lá pelos meus dezoito anos, cuecas sujas no cesto, má caligrafia, muitos alucinógenos. Naquela época nada era tão bonito quanto o sexo, cama esparramada, Anna na minha cama. Ela me contava de sua vida de forma cálida, tocando as pontas dos dedos, suando em minhas mãos, apalpando meu íntimo, me forçando, me chutando, me sangrando por todas as partes de meu corpo, aquelas pequenas emoções, tão frágeis. Eu não me desvencilhava, não fugia, só a beijava e jurava que seria eterno aquele nosso amor, nossa liberdade, nossos corpos magros direcionados para um grande romance, um filme de Hollywood, todas aquelas câmeras nos filmando. Soube alguns anos mais tarde que não era nada, não dava nem um best-seller, não havia set de filmagens, nosso caso não valia nem alguns trocados. Nos envolvemos com decepções amorosas, o tipo de prostituta que não devemos mencionar. Anna nunca disse se me amou. Nunca perguntei a Anna se ela me amava. Acho que tudo era pequeno demais para nossas almas, pequeno demais para todos aquelas sonhos, a minha infância ainda se espelhava nos meus olhos, o lápis preto em volta de suas pálpebras me mostrava uma vontade sanguinária de conhecer todo o resto do mundo e seu álcool, sua podridão, sexo, diferentes casas, diferentes homens, eu não era suficiente para Anna. Anna não era suficiente para mim. 

Eu conheci Anna há 6 anos, antes de toda aquela porcaria, 11 de setembro, poluição, casas com alarme. Eu quase não bebia, mas fumava demais. Anna gostava de dançar com desconhecidos em bares à beira de estradas mal faladas, ela se equilibrava entre garrafas e mãos bobas, sorrisos estrábicos e olhares débeis, todo aquele suor bêbado, mesas de sinuca esparramadas pelo cômodo. Eu cuidava da madrugada de Anna e a mostrava o caminho de volta para sua cama. Eu nunca a amei, mas me doei inteiro para a sua felicidade, seu maldito conforto. E agora estou sem nada. Não corto o cabelo há meses, larguei a faculdade no último período, comecei a escrever três livros no último ano. Tudo que eu vejo é Anna em meus sonhos, meus olhos, minha cama amarrotada, a barba da semana passada, o café amargo. Trouxe algumas garotas para casa, mas todas elas me sufocaram, me queimaram, acenderam em mim um ódio profundo, um remorso. Anna, não sei por que você teve que ir embora.

Eu me despedi de Anna em 2001 e ainda não sei por que tive que deixá-la. Naquele ano meu irmão mais novo ganhava seu primeiro Game Boy e eu já havia desistido de ser alguém na vida e ia ao cinema três vezes por semana. Anna havia pintado o cabelo de vermelho e agora terminava o curso de Francês e largava lentamente seu vício por cigarros de palha. Naquele ano, Anna começou a pintar quadros e arrumou um namorado. Não era eu. Anna gostava de mim pela minha cicatriz acima da sobrancelha, o cabelo mal cuidado, os óculos de grau um pouco tortos, minha cara de tarado. Eu não gostava de calças largas e me sentia mal com camisetas amarrotadas. Ela dizia que eu chamava atenção pelo modo como eu falava, gesticulava, sempre jogava o lixo na rua, não tinha escrúpulos, era um mal educado. Anna me chamava de querido e eu fritava ovos com bacon enquanto ela dançava pela cozinha, me dizia que eu era seu melhor amante, seu confidente, seu melhor sexo, perfume, nunca fomos nada sério. Eu a incentivei a partir, atuar em outras peças que não as minhas, ser melhor atriz do que na minha cama, ela me chamou de amor, deu um beijo, me abraçou e então, partiu.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Júri

Chegou com um cigarro amassado jogado prum lado da boca.
Achei engraçado e ri calado.

"Diga lá então, dessa vez qual é a acusação?"

Tomo a minha forma de prego enquanto você vira martelo
e julga meu delito.
Me assombrado na base do grito enquanto eu dum canto só assisto.
Já que onde você é rei, bedel e também juiz, eu não passo de bobo da corte.

O julgamento foi simulado, antes do início eu já era considerado culpado,
então continuei lá jogado e quase aplaudi quando acabou a encenação.
Só que na hora da prisão eu fugi num cavalo emprestado que me juraram que falava inglês.

Não quero mais enfrentar os batalhões.
Larguei o bodoque, agora só toco rock em uma ou duas matinês.

sábado, 27 de julho de 2013

porra nenhuma.

Deve ser bonito, sabe?
Toda aquela coisa piegas de 'estive esperando por você', que nem
comedia romântica clichê.

Porra nenhuma.

É, porra nenhuma.
Ninguém espera por ninguém, amigo. Só que a vida é tão fodida
que a gente tem que depositar esperança em algo mais.
A gente quer acreditar. Precisa acreditar. Então termina acreditando em alguém.
Aí escuta aquela música bonitinha e jura que fulano pensa em você também.
Te vem na cabeça as propagandas de margarina (sempre preferi requeijão)
e você se encaixa nos atores. Encenação.
Sabe que é fantasia, mas faz parte dela.
Que nem a sua avó querendo atender o telefone
que tá tocando na novela.

É sua isso aí, amor é publicidade e propaganda.


É quase uma desculpa.
Que nem sair de casa pra ir no bar jurando que vai
ver o jogo. Porra nenhuma. Você vai tomar cerveja, que eu sei.
Mesmo me jurando que vai beber coca-cola.
30 minutos de jogo e você já não tá enxergando nem a bola.

Só que todo porre trás ressaca no outro dia.
Ou pelo menos um mal estar na hora de levantar.
A verdade é que a gente começa só pra acabar.
Porque tudo acaba. E quando acaba você tem a impressão
que não tem mais nada.

Por isso que entre casar ou comprar uma bicicleta,
vou ver aquele filme de ação,
fumando um cigarro e esperando um comercial de requeijão.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Inexato


Verdade seja dita, estamos perdidos. Nos fodemos, amor. E bonito. Não há nada que possamos fazer, senão encher os copos de cerveja e queimar cigarros até o dia amanhecer. Podemos fingir que não estamos nos encarando à distância. Posso fingir que seus novos amigos não me deixam doente e que eu não odeio o rapaz que anda ao seu lado. A falsidade me acatou como uma melhor amiga, me deu abrigo e comida, quase me vestiu de felicidade. Mas, no final, não era nada. Nunca é. O que sempre fica é a ressaca, o resto te larga na cama e bate a porta na sua cara. A vida não é justa, não adianta chorar.

Não aguento mais te ver por aqui. Não aguento mais a sua ausência ecoando a minha casa. O barulho ensurdecedor do seu beijo no meu pescoço me deixa zonzo, me faz perder os caminhos, me tira do meu sonho, corta o álcool ingerido. Merda. Não quebre meus copos. Eu fecho os olhos, mas cacos de vidro arranham minhas pálpebras. Você não me deixa mais dormir.

Merda.